UMA CARTA FORA DO BARALHO (vou escrever sobre o JOKER, o filme)

NOTAS PRÉVIAS

Já não me apetecia ir ver este filme… Americano, sobre uma figura que tem servido para encobrir desvarios de grupo nas cidades – com que não consigo estar solidário -, e com tantos comentários de ‘poderoso’ e ‘arrebatador’, parecia-me impossível eu poder gostar de o ver.

Na semana passada, em dias consecutivos, no entanto, dois amigos dizem-me que gostavam de discutir o filme, e, sendo duas pessoas com quem gosto de conversar e cujos pontos de vista – ainda que possa quanto a eles estar em discordância – gosto de ouvir com atenção, pela coerência e qualidade das suas opiniões (e, porque também percebo que não concordando comigo, me ouvem e aceitam os meus argumentos), lá fui eu vê-lo.

A minha primeira impressão, no final do filme, foi: ‘A Oeste nada de novo…’.

Mas, logo de seguida, no momento de sair da sala de cinema após os ‘créditos’, vejo duas famílias com crianças a sair dali e, mais impactante, um grupo de cinco jovens já no corredor do CC a tentar imitar a gargalhada/choro-nervosa da personagem principal do filme. Alarme?!? Não… Infelizmente, julgo saber que qualquer jovem sonha ser herói e, por isso, experimenta ser bom a imitar um herói que acaba de ‘conhecer’, nem que esse seja improvável e um vilão, de facto. E só não é alarmante, porque a história do que o cinema tem produzido de sonhos de ‘grandeza negativa’ é já grande.

Se juntar isto à ideia rápida que a cena do JOKER a dançar em cima do carro da Polícia, no final, me proporcionou, então achei que tinha que rever a memória do que tinha acabado de ver – o filme -, e, eventualmente, fazer o que agora faço: registar as minhas leituras, por escrito, nem que, por uma vez, estas tenham um carácter mais negativo do que aquele que gosto de deixar impresso.

SOBRE O FILME

Ficção. Realidade aumentada, se quiserem. Estamos em Gotham City – a cidade imaginária de onde conhecemos outros Joker, mas, principalmente, o BATMAN -, e sabemos que aquela é uma cidade de todos os exageros, nomeadamente nas emoções. É, portanto, com o foco nas emoções que eu vejo o filme.

É-nos apresentado o momento vivido na cidade, ‘vítima’ de uma greve dos serviços de recolha de lixo, e vamos vê-lo acumulado em quase todos os cenários, sendo excepção o Teatro, o jardim da casa de um candidato à presidência da câmara e os corredores dos hospitais. Antes que me esqueça de o referir, porque até me parece significativo do ponto de vista político, numa das vezes que estamos a ouvir reportagens de TV sobre a greve, são entrevistados dois cidadãos que respondem como se aquilo fosse um pequeno problema: um refere-se ao cheiro, o outro à quantidade, mas não fica a impressão de que haja qualquer tipo de indignação. (Acho que devo dizer, de novo, que este foi o filme que eu ‘vi’, sendo certo que a realidade a que assisto está influenciada pelo meu próprio sistema de referências, e pode não corresponder ao filme que o leitor ‘viu’, ou ao filme em si, de todo).

Logo a seguir começa-nos a ser apresentada a personagem central do filme, a sua circunstância e os contornos de tal circunstância, com uma pincelada de cada vez, sempre a aumentar em intensidade para desenhar uma caricatura de alguém que muito sofreu, do ponto de vista psicológico, com traços grossos e cores primárias: viveu parte da vida internado num hospital psiquiátrico, de onde saiu há pouco; toma conta da Mãe, que vive no ilusório mundo do seu próprio sonho, e que o trata por ‘Feliz’ (Happy); beneficiário de um programa de apoio a doentes do foro psícológico inconsequente, que virá a ser interrompido por decisão política, em que tem a noção de não ser ouvido; com um instável e mal remunerado emprego de ‘palhaço’, em que sofre todas as vicissitudes de quem não tem qualquer controlo sobre a sua condição;  vão ser acrescentados dados de violência sofrida nos primeiros anos, abandono familiar, rejeição e mentira… Tudo isto se soma às agressões, físicas e psicológicas que o dia a dia lhe traz e, em função de tanto infortúnio, ele mesmo regista, no seu caderno, tipo Diário, entre as frases e os assuntos sobre os quais quer montar um espectáculo de Stand-up Comedy, uma das frases mais marcantes do filme, para mim (se calhar porque está mal traduzida na primeira vez que aparece… por ser traduzida a impressão oralizada de tal frase e não aquilo que, efectivamente, está escrito no caderno), e que é algo como: I wish my death makes more CENTS than my life; ‘espero que a minha morte renda mais cêntimos do que a minha vida’, escrita num tom de humor-negro em que a forma oral se pode confundir com ‘espero que a minha morte faça mais sentido do que a minha vida’

É, relembro, um filme americano, e, por isso, não me surpreende que seja a importância do dinheiro (cents, neste caso) o factor de afirmação de referência. Opinião minha, claro…

A personagem é alguém que, sendo um ser humano, sonha com a glória. No seu caso, imagina-se acarinhado como Comediante de Stand-up pela principal figura da indústria do entretenimento de Gotham; imagina-se como amante, amado, da vizinha que vive só com o filho; percebe-se que ama as crianças que encontra e que a sua busca é, afinal, a busca do amor, seja o da Mãe, o da mulher do lado, o do comediante famoso ou o dos seus supostos Pai e irmão; acaba por vislumbrar na violência – gratuita e quase involuntária, a princípio; ainda gratuita, mas já premeditada e gozada como uma refeição, nos actos finais – a fonte única da sua possibilidade de deixar marcas importantes da sua passagem pela vida…

A outra frase marcante do filme, para mim, é aquela, repetida pelo menos duas vezes, em que diz que sente que ‘ninguém repara’ nele… A carta fora do baralho… A carta que está no pacote, mas com que não se conta quase nunca para jogar ou para ter um papel activo.

Todos, acredito, nos revemos nesse sentimento em algum aspecto das nossas vidas, algum dia. (Por isso aponto o reconhecimento positivo como uma das acções mais importantes da nossa vida em comunidade, nas empresas como na vida familiar e entre amigos).

Tal sentimento – o de que ‘ninguém repara em mim’ -, agora desdobrado no seu contrário (‘agora já ninguém me vai esquecer!’) vai acabar por ser usado em jeito de panfleto político, no final do filme, na apoteose de rua que o JOKER recebe após ser libertado do carro da Polícia que o levava, na sequência do assassinato gratuito do seu antigo ídolo, agora já ‘inimigo’.

O resto do filme são acidentes… O de que gostei menos, porque não achei gratuito, foi a demonstração de que num filme americano de 2019 já não se vê nenhuma marca de cigarros – o que se saúda! -, mas é identificada uma pistola, gabada pela sua qualidade, com indicação do calibre… Que me desculpem, mas acho isto inadmissível! Gostava mesmo de saber o que é que o Produtor deste filme esteve a vender para se financiar… Pistolas?!? Máscaras?!? Fatos completos?!?

De resto, uma boa coordenação de actores e um excelente desempenho de Joaquin Phoenix, para além da sempre sólida presença de Robert de Niro, e a leve pincelada – porque aquele nome nunca é referido – que nos indica as primeiras influências numa criança que virá a ser o BATMAN (um defensor da Justiça, tipo a ‘consciência do Bem’, sempre atento aos movimentos do Joker, quando já adulto).

SOBRE A SAÚDE MENTAL

A exposição dos detalhes que constroem a personagem propicia um certo sentimento de solidariedade para quem, coitado, sofreu tanto…

Mas sabem do que me fez lembrar?!?

Robin Williams, o actor, e Whitney Houston, a cantora… para além de Romi Schneider, ainda que neste caso sem grande informação para correlacionar.

Que terão eles sofrido na sua vida íntima? Quem esteve lá, pronto a ouvi-los nas suas verdades mais escuras, nos seus momentos de necessidade de sentir um abraço? Eles que, pelo menos enquanto actores (e só consigo ver a Whitney como actora!, a que interpreta ‘The greatest Love’…), tanto falavam de amor pelo próximo e auto-estima.

É que, aqui, estamos perante uma história de ficção… O caso deles foi real! E levou-os a cometer o pior dos crimes, quando bramiam as melhores ideias, as palavras mais positivas e ‘motivadoras’, ou cantavam elogios à auto-estima e, afinal, no final, que fizeram…?!?

Onde esteve a solidariedade dos seus próximos?

Aclamados enquanto actores, que lhes sobrava de amor na verdadeira vida? Pelos vistos, nada…

Quantos outros estarão nesse caminho?

Que estamos nós, enquanto membros vivos desta sociedade em que vivemos, a fazer para diminuir a ocorrência desse tipo de histórias?

Que disponibilidade tem o leitor para ir a correr ter com o seu amigo, familiar ou conhecido que está a sofrer de depressão?

(A todos os que já estão a fazer alguma coisa e têm, de facto, demonstrado aquela disponibilidade para os outros, os meus Parabéns! Sei que os há e que o seu número está a crescer).

Voltando ao filme, não posso deixar de registar que se aponta muito bem – em cenas que parecem caricaturas do ambiente que vivemos nas empresas -, factos que promovem a insegurança e a precariedade dos empregos, com forte tendência para a injustiça, para além de nos serem recordados os falsos amigos e as consequências de aceitarmos a sua ‘ajuda’. Em suma, caracteriza-se a força do boato acusatório, que é mais tido em conta do que a verdade dos factos. O que estas injustiças propiciam nos indivíduos que as sofrem é, a maior parte das vezes, calado por tal ‘vítima’, ficando, no entanto, guardado como uma pedra que será atirada contra qualquer outro agressor, quantas vezes sem que o motivo seja suficientemente relevante. E, quando essas pedras se juntam, porque ao mesmo tempo são acordadas nos indivíduos que as transportam, temos manifestações de grupo como aquela a que vamos assistir no final do filme, em que, convém lembrar, o que está em causa é uma espécie de revolta contra quem tem um estatuto de privilégio – as três primeiras vítimas do JOKER eram correctores da Bolsa, tidos como privilegiados, tal como se ouve nas notícias.

Uma outra nota sobre precariedade de emprego e a sua consequência directa é-nos dada pela Psicóloga do programa de apoio a doentes do foro psicológico. Claramente, a senhora está a cumprir um papel que não tem futuro – depende da vontade política, que ela, obviamente, não controla – e, pelo seu ar cansado, é fácil imaginar que lhe esteja a acontecer o mesmo que vi com Assistentes Sociais em programas de RSI: utentes a mais, insegurança relativamente ao seu próprio emprego, baixa remuneração e muitas exigências, pelo que o esforço de ouvir o outro passa a ser doloroso… Assim, em vez de sentir carinho e apoio, o que o utente sente durante as entrevistas (estou a falar do filme!) é desinteresse, e esse sentimento negativo vai apenas agravar a sua situação, o seu desequilíbrio emocional.

O PANFLETO POLÍTICO

Na cena final lembrei-me da Praça de Berlim a aclamar Hitler, da Praça Vermelha a aclamar Estaline, das recentes eleições nos Trump e de Bolsonaro, das imagens de vitória de Boris Johnson, e fiquei triste…

Aclama-se um louco, em qualquer dos casos, com todos os riscos que a cegueira provocada pela loucura pode criar, só porque se vê colectivamente uma das suas opções mais negativas e violentas como boa. Estranho mundo que parece não aprender…

Também me lembrei das manifestações de rua em França e Hong-Kong e de todas aquelas em que as máscaras de palhaço-que-ri vêm sendo usadas, e não pude deixar de sentir preocupação com o que isso produz.

Por trás de uma máscara, qualquer um pode ser o que quiser, quase sem consequências de responsabilização pelos actos que pratique.

Não quero acreditar que fosse objectivo do filme incitar a esse tipo de comportamento. Julgo saber, no entanto, que, demasiadas vezes, se tenta imitar na vida real aquilo que se viu acontecer em filmes. (Li algures que os ataques às torres gémeas foram inspirados num outro filme americano, de ficção… – ficção violenta, claro).

O filme mostra, quase como se não fosse importante, como se comportam ‘as massas’ enquanto colectivo: não nos importamos muito com o que nos incomoda colectivamente – a greve dos lixeiros; os marginalizados que a sociedade vai criando – programa social interrompido sem problemas; mas exultamos em conjunto com actos de raiva contra quem representa o poder, nem que, assim, estejamos a deificar loucos, verdadeiramente anti-sociais, sem que nesse momento sejamos sensíveis ao que daí possa advir.

CONCLUSÃO

Trata-se, felizmente, de um filme de ficção. Está bem montado e realizado, e a história segue-se com facilidade. O trabalho dos actores é muito bom e o do que faz o papel principal é de alto nível.

Cada um dos espectadores verá um filme diferente.

Se calhar vale a pena ver o filme… A menos que odeie violência e não goste de ser incomodado. Neste caso, quando sair à rua, não repare em nada que não seja da natureza: uma flor, o contraste de um relvado com o mar ao fundo a 10 minutos do pôr-do-sol, um vale frondoso com um rio que corra sereno, por exemplo…

Sinto que as minhas notas estão carregadas de sentimentos negativos; não foi o filme que os colocou aqui!; já cá estavam e só foram acordados, mas tratarei de os pôr a dormir, de novo. Ou, como apregoo, de os usar para ir à procura de possíveis soluções que permitam alterar as circunstâncias em que vivemos, pelo menos, no mundo ocidental.

Na minha opinião, é na educação, desde a base, que estará a salvação da sociedade capitalista em que vivemos. Defendo, e já escrevi sobre isso, que se desenvolva a partir do infantário uma ‘disciplina’ sobre valores humanos, que baseio em três grandes níveis: Liberdade, Respeito responsável e Ética. Li, já depois de começar a escrever estas notas, que na Finlândia já há algo do género, em que se ensina ‘Empatia’.

O mundo pode melhorar.

Publicado por Luís Cochofel

Um 'lírico' (para o bem e para o mal...) que gosta desta frase: 'O problema do Homem não está em colocar os seus alvos muito alto e falhar, mas, antes, em os colocar demasiado em baixo e acertar!' Michelangelo - Nascido antes de mim um bom par de anos...

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